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Artigo: "Projeto da terceirização: para acabar de vez com a produtividade do trabalho no Brasil"

Texto do procurador do Trabalho Rafael de Araújo Gomes, do MPT em Araraquara (SP)

     O debate público em torno do Projeto de Lei 4.330/2004, que pretende tornar admissível a terceirização de todos os postos de trabalho em todas as empresas do país, tem sido marcado pela repetição insistente, em numerosos meios de comunicação, dos seguintes argumentos: ?a terceirização é boa para os trabalhadores?, ?os trabalhadores não serão prejudicados?, ?a produtividade do trabalho vai aumentar, será bom para o país?.

     Para quem sabe como funciona a maior parte das terceirizações já praticadas no país, tais argumentos impressionam pelo completo divórcio com a realidade. Os fatos são exatamente o oposto disso, o que não impede que o discurso seja repetido incessantemente, com o provável propósito de convencer o público menos informado.

     Sou procurador do trabalho, o que significa que, por dever de ofício, sou obrigado a lidar com os problemas trabalhistas criados por empresas terceirizadas. Posso dizer, com conhecimento de causa, que não são problemas pontuais. Trata-se de uma verdadeira avalanche de ilícitos e lesões trabalhistas, que parecem não ter fim, pois os casos se repetem sem solução, muitas vezes sem punição à altura, não obstante a atuação dos órgãos de fiscalização.

     Na mesma semana em que a Câmara dos Deputados aprovava o projeto de lei, por exemplo, eu estava analisando os dados da quebra do sigilo bancário decretada em uma ação civil pública movida pelo Ministério Público em face de uma empresa terceirizada de vigilância, que desapareceu há dois anos deixando para trás enorme passivo trabalhista e centenas de trabalhadores prejudicados.

     A movimentação financeira revelada pela quebra permitiu que se descobrisse que os sócios da empresa, que prestava serviços a inúmeros órgãos públicos e também a diversas empresas privadas, desviaram mais de um milhão de reais das contas da terceirizada nos doze meses anteriores à interrupção das atividades. Quase metade desse dinheiro foi transferida ao principal sócio após sua aparente, na verdade fraudulenta, saída da sociedade. No mesmo período a empresa já experimentava sérios problemas trabalhistas, como atrasos no pagamento de salários e não recolhimento de contribuições. À Justiça do Trabalho, entretanto, antes de ser decretada a quebra, os sócios alegaram em sua defesa que só retiravam da empresa ?cinco mil reais por mês? cada um.

Os dados da quebra do sigilo bancário provaram, portanto, que os sócios provocaram deliberadamente a destruição da própria empresa, sugando dela os recursos disponíveis e necessários ao cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciária.

     E mais: logo após o desaparecimento dessa empresa, que ocorreu dois anos atrás (a ação judicial tramita desde então, e ainda não foi julgada), os mesmos sócios abriram outra empresa terceirizada de vigilância, a qual neste ano de 2015 seguiu o mesmo destino, quer dizer, também encerrou de súbito as atividades, deixando muitos trabalhadores sem receber salários atrasados.

     O leitor poderá imaginar que se trata de caso excepcional, pontual. Não é. Tais situações são absolutamente corriqueiras. Todos os meses empresas terceirizadas fecham sem aviso as portas, provocando uma avalanche de ações na Justiça do Trabalho. Na maior parte dos casos, os trabalhadores não conseguem, mesmo recorrendo ao Judiciário, receber aquilo a que têm direito, pois não são localizados bens à execução, tendo sido o dinheiro desviado há muito tempo.

     Dou outro exemplo concreto: dei prosseguimento a outras duas investigações em face de empresas de vigilância que fecharam as portas sem pagar os trabalhadores. Não havia relação entre as duas empresas, eram casos diversos, envolvendo clientes diversos.

     Imaginei que se descobrisse o destino que foi dado, em ambos os casos, às armas que eram utilizadas pelos vigilantes, eu descobriria as novas empresas criadas pelos mesmos donos, ainda que estivessem em nome de ?laranjas?.

     A estratégia não deu certo, pelo seguinte motivo: em ambos os casos, todas as armas, sem exceção, haviam sido comunicadas à Polícia Federal como tendo sido ?furtadas e/ou roubadas?. E estamos falando de enorme quantidade de armas, várias dezenas de revolveres, pistolas e espingardas, além da munição.

     Tais armas não poderão ser reutilizadas por qualquer outra empresa de vigilância, dado que possuem o sinal de identificação indelével. Então há forte suspeita de que foram parar no crime organizado.

     Vejam o significado disso: além da precarização trabalhista, causada pela repetição sem fim de casos de empresas terceirizadas que desaparecem sem pagar salários e verbas rescisórias, e além do prejuízo aos clientes (tomadores), surpreendidos pela inesperada interrupção dos serviços, temos ainda o abastecimento de armamento ao mundo do crime.

     E ainda tentam convencer a sociedade que as terceirizações, que querem ver ampliadas, são boas aos trabalhadores e ao país!

     Mas a premissa que considero mais absurda dentre as que são repetidas, e que não costuma ser tão frequentemente contestada por aqueles que se opõem à aprovação do Projeto de Lei, é a de que a terceirização irá ?aumentar a produtividade do trabalho, favorecendo o desenvolvimento?.

     Tal discurso pode ser exemplificado pela recente declaração do presidente do Sistema Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira, publicada dias atrás pelo Monitor Mercantil: ?terceirização é salto de produtividade para as empresas?.

     Tal afirmação revela um descompromisso quase inacreditável com a realidade. Chega a impressionar que semelhante inverdade seja repetida tantas vezes, e com tanta eloquência, quando a realidade é justamente o oposto disso: as terceirizações praticadas no Brasil são um verdadeiro veneno à produtividade do trabalho.

     A produtividade do trabalho no Brasil é notoriamente muito baixa. É um quinto da verificada nos Estados Unidos, por exemplo. E tal diferença significa que o trabalhador norte-americano, trabalhando o mesmo número de horas que o trabalhador brasileiro, produzirá muito mais.

     As razões para isso são várias. Sugiro a leitura, sobre o tema, de esclarecedora reportagem publicada pela BBC Brasil em maio de 2014, ?Entenda por que a produtividade no Brasil não cresce? (em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/05/140519_produtividade_porque_ru).

     As principais razões que interferem na produtividade podem ser assim sintetizadas: educação e qualificação profissional dos trabalhadores e empresários, investimento em tecnologia e inovação aplicadas ao processo produtivo, investimento (público e privado) em infraestrutura (incluindo transportes, comunicações, etc.).

     Ou seja, quanto menor o investimento, seja em qualificação da mão de obra, seja no aperfeiçoamento dos processos produtivos, seja em infraestrutura, menor será a produtividade.

     O que se está propondo com a ampliação das terceirizações é a radicalização de uma estratégia de redução de custos proporcionada pelo desinvestimento em larga escala na produção. Deseja-se transferir parte dos custos para empresas terceirizadas, que não terão qualquer condição de proporcionar nem melhor qualificação, nem aperfeiçoamento de processos produtivos, nem investimentos em tecnologia.

     Alega-se que a terceirização permite maior especialização, pois as empresas terceirizadas seriam mais especializadas naquilo que fazem do que as empresas que tomam seus serviços. As tomadoras poderiam, graças a isso, dedicar-se a aspectos mais importantes de seu negócio.

     Isso seria, de fato, excelente. Não haveria problema algum na terceirização de serviços altamente especializados, com relação aos quais a prestadora dos serviços possui expertise e conhecimentos técnicos muito superiores aos da tomadora, inclusive porque tais atividades não dizem respeito ao cerne do negócio da tomadora.

     O que não se diz ao público, entretanto, é que terceirizações nesses moldes são raras no Brasil, são a exceção. A regra é a terceirização de atividades que exigem menor qualificação profissional, realizadas por empresas que possuem capacidade técnica e financeira muito inferior à da tomadora dos serviços. Essa é a realidade da maioria das terceirizações hoje praticadas no país, e que serão extraordinariamente ampliadas caso o projeto aprovado na Câmara se transforme em lei.

     Vamos, entretanto, aos exemplos concretos, para a argumentação não seja mantida no plano teórico. Apresento a seguir ao leitor casos reais de terceirizações recentes, ocorridas nos últimos quatro anos, e que foram contestadas judicialmente pelo Ministério Público do Trabalho, em ações por mim propostas (em tudo semelhantes a centenas de outras ações propostas por outros procuradores em todas as partes do país):

     1) Terceirização de postos de trabalho na linha de produção de uma das maiores montadoras de automóveis do mundo, através da contratação de uma associação, supostamente sem fins lucrativos, que tem por objetivo a prestação de amparo e assistência a pessoas com deficiência mental, sendo que os trabalhadores terceirizados não apresentavam qualquer tipo de deficiência, não possuindo a associação, de acordo com seus próprios estatutos, qualquer especialização nas atividades que foram terceirizadas;

     2) Terceirização da colheita mecanizada de cana-de-açúcar praticada por um dos maiores, senão o maior, grupo econômico do setor da cana (produção de açúcar e etanol) do país, com a contratação de empresa terceirizada que não possui, de acordo com seu contrato social, qualquer tipo de especialização para colheita de cana ou para qualquer outro tipo de atividade agrícola, ou seja, empresa absolutamente inepta à atividade que foi terceirizada, para a qual, ao revés, o grupo econômico tomador dos serviços possui enorme qualificação, de fato ímpar no país. Acrescente-se que a Usina realizava simultaneamente a mesma atividade (colheita mecanizada) com funcionários próprios, sendo que os terceirizados recebiam salário 63% menor que os empregados da tomadora no mesmo serviço.

     3) Terceirização praticada por uma grande construtora, sendo que os trabalhadores na obra eram, em sua maioria, empregados de pessoas jurídicas criadas em nome dos mestres de obra, empresas ?de fachada? desprovidas de qualquer patrimônio, e que foram abertas poucos meses antes do início da obra. Os operários eram mantidos em alojamento precário e improvisado, na verdade uma sala comercial alugada, sem janelas, na qual também eram guardados carros e motos.

     4) Frigorífico, já envolvido em numerosos problemas trabalhistas, que transferiu todos os seus funcionários a empresa terceirizada recém-criada (os trabalhadores foram, portanto, demitidos e recontratados pela terceirizada), que prestava serviços com exclusividade ao frigorífico, figurando como sócios da terceirizada ?laranjas? vinculados aos donos da tomadora.

     5) Terceirização praticada por empresa de logística ferroviária criada por um dos maiores grupos econômicos do setor do país, com a contratação de empresa ?de fachada?, em nome de sócios que na realidade eram empregados de outras empresas (um trabalhava como auxiliar de escritório, o outro como vigilante), desprovida de qualquer qualificação técnica, experiência ou patrimônio, sendo que a tomadora anunciava, em seu sítio na internet, possuir grande expertise nas atividades que na realidade tinha terceirizado. Além disso, o objeto social constante no contrato social da empresa terceirizada era transporte rodoviário, portanto diverso da atividade terceirizada, logística ferroviária. A terceirizada abandonou seus 32 funcionários com vários meses de salário por pagar e sem ter realizado os recolhimentos de FGTS e INSS, e a tomadora afirmou que tal situação ?não era problema seu?.

     6) Terceirização praticada por uma das maiores multinacionais do setor químico do mundo, tratando-se da maior produtora mundial de agrotóxicos, com a contratação de diversas empresas, algumas sem qualquer dedicação às atividades terceirizadas (por exemplo, empresa de transporte de cargas rodoviárias, mas envolvida na produção de mudas de cana-de-açúcar), ao ponto de uma equipe de trabalho com apenas sete funcionários ser constituída por empregados de cinco empresas diferentes. Nesse caso, o abuso na proliferação de terceirizações contribuiu à ocorrência de um acidente fatal (atropelamento do funcionário de uma terceirizada por veículo conduzido por empregado de outra terceirizada, que não se comunicaram como deveriam), pelos prejuízos causados à coordenação das atividades e antecipação dos riscos, dado que cada colega de equipe na verdade respondia a uma empresa diferente.

     Muitos outros exemplos, sem dúvida centenas deles, em tudo semelhantes a esses, poderiam ser listados, relacionados a situações combatidas judicialmente pelo Ministério Público do Trabalho, em todas as partes do país. Em muitos desses casos, não obstante o ajuizamento da ação e as provas existentes, a terceirização inclusive persiste, com a utilização de empresas ?de fachada? ou que não possuem em seu contrato social qualquer relação com a atividade terceirizada.

     Note-se que todos os exemplos concretos que listei dizem respeito a terceirizações nas quais as supostas tomadoras dos serviços são empresas de grande porte, dotadas de extraordinária especialização justamente na realização das atividades que foram terceirizadas.

     Ora, por que um dos grupos econômicos mais poderosos do país do setor de cana-de-açúcar, por exemplo, iria terceirizar justamente a colheita da cana-de-açúcar, atividade que sempre foi por ela realizada, há décadas, através da contratação de uma microempresa que não possui qualquer tipo de especialização para a atividade a ser desenvolvida? Por que uma montadora multinacional terceiriza parte de sua linha de produção a uma entidade filantrópica desprovida de qualquer tipo de qualificação para atividades industriais?

     A razão é uma só, e é a mesma razão pela qual a esmagadora maioria das terceirizações praticadas no Brasil ocorre: busca-se apenas e tão somente a redução de custos, mesmo que isso signifique perda de qualidade.

     Paga-se à terceirizada menos do que se gastaria executando a atividade de forma direta, justamente porque a terceirizada pagará salários mais baixos, não recolherá corretamente as contribuições legais, e evitará o estabelecimento do vínculo trabalhista com a tomadora.

     Recebendo menos do que seria necessário para realizar bem (quer dizer, com qualidade e eficiência) a tarefa, as terceirizadas são mantidas em condição técnica e financeira precária, no limiar da viabilidade e sobrevivência econômica, fronteira essa que é ultrapassada com frequência (levando ao abrupto, mas já habitual, desaparecimento de terceirizadas), sendo a sonegação de direitos trabalhistas e de tributos a estratégia mais usada. Além disso, não possuem tais empresas terceirizadas qualquer capacidade de investimento, sendo mantidas na condição de meros fornecedores de mão de obra.

     Percebe-se que as terceirizações, como são praticadas no Brasil, excluídas as pontuais terceirizações de atividades altamente especializadas, prestadas por empresas sérias e dotadas de independência financeira e técnica, constituem uma simples política de desinvestimento por parte do empresariado nacional (e mesmo estrangeiro, pois como se viu, vários dos casos envolvem multinacionais estrangeiras, acostumadas que estão a obter, no Brasil, margens de lucro muito maiores que as praticadas em outros países).

     A razão de ser da maior parte das terceirizações realizadas no Brasil está, portanto, no desejo de se investir menos no trabalhador, transferindo tal ônus a outra empresa (que paga salário mais baixo, e não possui qualquer condição financeira de proporcionar ou mesmo exigir de seus empregados superior qualificação técnica), e também de se investir menos no aperfeiçoamento dos processos produtivos, pois parte da responsabilidade por eles é transferida a empresas técnica e economicamente precárias, desprovidas de independência e sem acesso a tecnologia avançada.

     Universalizar tal tipo de terceirização, como se pretende com o Projeto de Lei 4.330/2004, trará como resultado, inevitavelmente, a redução ainda maior da produtividade do trabalho no Brasil, que já é preocupantemente baixa.

     Em vez de termos trabalhadores mais qualificados, e ao invés de investirmos mais no aperfeiçoamento dos processos produtivos, teremos uma massa de trabalhadores mal pagos, altamente desmotivados, periodicamente lesados com a supressão pura e simples de salários, descompromissados com o destino da empresa tomadora, da qual sequer fazem parte, submetidos a maiores riscos de acidentes e doenças do trabalho, e ainda teremos a produção nacional comprometida, em termos qualitativos e quantitativos, pela participação preponderante de empresas precárias, débeis, que mal conseguem assegurar sua própria sobrevivência, e que não terão a menor condição de realizar investimentos.

     Será que é isso, de fato, o que queremos para o Brasil? Diante do desafio de aumentar a produtividade do trabalho, daremos vários passos para trás, e aprofundaremos o problema? Em vez de criarmos condições para aumentar o investimento público e privado, abriremos a todas as empresas do país a opção pelo desinvestimento e pelo lucro fácil e rápido, em detrimento do futuro? Aniquilaremos inclusive a opção do financiamento público, dado que por óbvio a arrecadação do estado será seriamente impactada pela sonegação?

     O quadro descrito, e o avanço do projeto no Congresso Nacional, evidenciam que a raiz do dilema da produtividade no Brasil não está em qualquer tipo de atraso ou deficiência dos trabalhadores brasileiros, que trabalham tanto quanto ou mais que os trabalhadores em países desenvolvidos, mas na gritante miopia estratégica, ineficiência e, perdoe-me o leitor a franqueza, estupidez da elite política e empresarial brasileira, que não pensa no futuro, que não deseja verdadeiramente o desenvolvimento do país, que vê de bom grado a perpetuação do Brasil como simples exportador de commodities agrícolas e minerais, e que está prestes a dar ? e de escopeta - um tiro no próprio pé, do qual só se dará conta quando milhares de trabalhadores em revolta, que ficaram sem receber por vários meses seus salários se cansaram disso, estiverem tomando as ruas e ocupando prédios de empresas e repartições públicas.

Tags: Maio

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